Classe Distinta da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo
Bacharel em Direito pela Universidade São Francisco
Pós-Graduado em Direito Administrativo pela Escola de Contas do TCM-SP
No final de 2014, foi divulgada amplamente na mídia, em
especial no segmento da segurança pública, a decisão da Quinta Turma do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Habeas
Corpus nº 294.078/SP, que não considerou o fato de uma arma de fogo
apreendida em razão do certificado de registro estar fora do prazo de validade
não configurar o crime de posse de arma de fogo previsto no artigo 12 da
Lei nº 10.826/2003, porém ao invés de causar uma sensação de indignação na
Blosgfera Azul Marinho, foi recepcionada com alívio, pois os procedimentos
previstos na Lei para regularização são exigentes, complexos e custosos.
Na decisão, o Relator, Ministro Marco Aurélio Belizze
estabelece:
"Na espécie, o paciente foi denunciado pela
suposta prática da conduta descrita no art. 12 da Lei n. 10.826/2003, por
possuir irregularmente um revólver marca Taurus, calibre 38, número QK 591720,
além de dezoito cartuchos de munição do mesmo calibre."
"Todavia, no caso, a questão não pode extrapolar
a esfera administrativa, uma vez que ausente a imprescindível tipicidade
material, pois, constatado que o paciente detinha o devido registro da arma de
fogo de uso permitido encontrada em sua residência – de forma que o Poder
Público tinha completo conhecimento da posse do artefato em questão, podendo
rastreá-lo se necessário –, inexiste ofensividade na conduta. A mera
inobservância da exigência de recadastramento periódico não pode conduzir à
estigmatizadora e automática incriminação penal. Cabe ao Estado apreender a
arma e aplicar a punição administrativa pertinente, não estando em consonância
com o Direito Penal moderno deflagrar uma ação penal para a imposição de pena
tão somente porque o indivíduo – devidamente autorizado a possuir a arma pelo
Poder Público, diga-se de passagem – deixou de ir de tempos em tempos efetuar o
recadastramento do artefato. Portanto, até mesmo por questões de política
criminal, não há como submeter o paciente às agruras de uma condenação penal
por uma conduta que não apresentou nenhuma lesividade relevante aos bens
jurídicos tutelados pela Lei n. 10.826/2003, não incrementou o risco e pode ser
resolvida na via administrativa"
Porém, tal decisão demonstra a total fragilidade do Poder
Judiciário Brasileiro, pois no caso o envolvido detinha apenas o certificado de
registro expedido em 31/11/1998 pela Divisão de Produtos Controlados da Polícia
Civil do Estado de São Paulo, sendo apreendida em 15/03/2013, ferindo os
seguintes dispositivos da Lei nº 10.826/2003:
“Art. 5º - O
certificado de Registro de Arma de Fogo, com validade em todo o território
nacional, autoriza o seu proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no
interior de sua residência ou domicílio, ou dependência desses, ou, ainda, no
seu local de trabalho, desde que seja ele o titular ou o responsável legal pelo
estabelecimento ou empresa”
Ҥ 3o
O proprietário de arma de fogo com certificados de registro de propriedade
expedido por órgão estadual ou do Distrito Federal até a data da publicação
desta Lei que não optar pela entrega espontânea prevista no art. 32 desta Lei
deverá renová-lo mediante o pertinente registro federal, até o dia 31 de
dezembro de 2008, ante a apresentação de documento de identificação pessoal e
comprovante de residência fixa, ficando dispensado do pagamento de taxas e do
cumprimento das demais exigências constantes dos incisos I a III do caput do
art. 4o desta
Lei”
“Art.
30. Os possuidores e proprietários de arma de fogo de uso permitido ainda
não registrada deverão solicitar seu registro até o dia 31 de dezembro de 2008,
mediante apresentação de documento de identificação pessoal e comprovante de residência
fixa, acompanhados de nota fiscal de compra ou comprovação da origem lícita da
posse, pelos meios de prova admitidos em direito, ou declaração firmada na qual
constem as características da arma e a sua condição de proprietário, ficando
este dispensado do pagamento de taxas e do cumprimento das demais exigências
constantes dos incisos I a III do caput do art. 4o desta Lei”
“Art. 31. Os possuidores e
proprietários de armas de fogo adquiridas regularmente poderão, a qualquer
tempo, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e indenização, nos termos
do regulamento desta Lei.”
“Art. 32. Os
possuidores e proprietários de arma de fogo poderão entregá-la,
espontaneamente, mediante recibo, e, presumindo-se de boa-fé, serão
indenizados, na forma do regulamento, ficando extinta a punibilidade de eventual posse irregular da referida arma”
A matéria ainda foi objeto do Decreto nº 5.123/2004:
"Art. 67-B. No caso do não-atendimento dos
requisitos previstos no art. 12, para a renovação do Certificado de Registro da
arma de fogo, o proprietário deverá entregar a arma à Polícia Federal, mediante
indenização na forma do art. 68, ou providenciar sua transferência para
terceiro, no prazo máximo de sessenta dias, aplicando-se, ao interessado na
aquisição, as disposições do art. 4º da Lei no 10.826, de 2003"
“Art. 70-A. Para
o registro da arma de fogo de uso permitido ainda não registrada de que trata o
art. 30 da Lei no 10.826,
de 2003, deverão ser apresentados pelo requerente os documentos previstos no
art. 70-C e original e cópia, ou cópia autenticada, da nota fiscal de compra ou
de comprovação da origem lícita da posse, pelos meios de prova admitidos em
direito, ou declaração firmada na qual constem as características da arma e a
sua condição de proprietário.”
Se não bastasse, o ordenamento jurídico brasileiro é uma
bagunça, pois tanto na Lei quanto no Decreto o prazo final é de 30/12/2008,
contudo o prazo foi prorrogado pela Lei nº 11.922/2009, que dispõe sobre
dividendos e juros de capital por parte da Caixa Econômica Federal:
“Art. 20. Ficam prorrogados para 31 de dezembro de 2009
os prazos de que tratam o § 3o do art. 5º e o art. 30, ambos da Lei no 10.826,
de 22 de dezembro de 2003.”
Independente da interpretação, a incredulidade da decisão
afeta o sentimento daquele que não possa admitir como razoável que durante
blitz num estabelecimento comercial (num bar como na decisão mencionada), ou no
atendimento de uma ocorrência, o agente de segurança pública encontre uma arma
de fogo com certificado de registro vencido e nada faça, por se tratar de mera
infração administrativa, sendo que o Nobre Relator ao aventar que cabe ao
Estado a apreensão da mesma e aplicar a punição administrativa, demonstrou
total desconhecimento da norma, pois tal possibilidade inexiste na norma,
cabendo aqueles que estão irregulares a entrega da arma de fogo na Campanha do
Desarmamento ou renovar o certificado ou transferir a mesma a terceiro
habilitado no prazo de 60 (sessenta dias), caso contrário, não extingue a
punibilidade de eventual posse irregular da referida arma.
O desconhecimento é tamanho, pois o cidadão que tiver em
sua posse ou guarda arma de fogo com registro emitido por órgão estadual não
terão seus pedidos de regularização recebidos, conforme consta no Portal da Polícia Federal:
“Após
31/12/2009, quem possuir uma arma de fogo sem registro ou com registro estadual
vencido DEVERÁ entregá-la na Campanha do Desarmamento (munido de uma guia de
trânsito de arma de fogo obtida em www.entreguesuaarma.gov.br) e receberá uma
indenização de R$ 100,00 a
R$ 300,00. Quem não promover a entrega de sua arma sem registro ou com registro
estadual vencido à Polícia Federal estará sujeito a responder pelos crimes
previstos na Lei nº. 10.826/2003.”
Porém, entendimento do Nobre Relator parece se firmar nas
cortes brasileiras, tanto que a Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, na Apelação
Crime nº 7006.1056461, aplicou o mesmo princípio no caso:
"Na oportunidade, o denunciado possuía e
mantinha sob sua guarda, no interior de um bar de sua propriedade, 01 (um)
revólver marca Taurus, acabamento oxidado, calíbre 32, n.º 1175.32 e 04
(quatro) cartuchos calíbre 32, intactos, conforme auto de apreensão da fl. 11
do Inquérito Policial. A arma de fogo e as munições foram apreendidas em
abordagem conjunta realizada pela Polícia Civil, Brigada Militar, Corpo de
Bombeiros e Vigilância Sanitária em diversos estabelecimentos."
Curiosamente, no caso da arma de fogo não possuir
certificado de registro o entendimento não é aplicável, como na decisão do Habeas
Corpus nº 307179/RS do STJ em
que o Relator, Ministro Sebastião Reis Junior, estabelece:
"Ademais, a hipótese dos autos trata de posse de
arma de fogo de uso permitido, mas não registrada junto aos órgãos
competentes (fl. 23). Sendo assim, não se aplica à espécie o entendimento
da Corte de que a posse de arma com registro vencido configura apenas
infração administrativa"
Inacreditavelmente, após mais de 11 (onze) anos da edição
da Lei nº 10.826/2003, tudo que foi ministrado na formação dos agentes de
segurança pública estava equivocado, ante a interpretação do judiciário, tanto
que no Portal do Departamento
de Polícia Federal consta a
seguinte orientação:
"14. Possuo uma arma de fogo sem registro. O que
devo fazer?; Perdi o prazo de 31/12/2009 para realizar o registro da arma. O
que pode ser feito?
Caso você possua uma arma que não teve seu registro emitido
pela Polícia Federal você poderá entregá-la na Campanha do Desarmamento (www.entreguesuaarma.gov.br). Vale lembrar que possuir e guardar
uma arma de fogo sem registro é crime de posse irregular de arma."
Na formação dos agentes de segurança pública é notório que
em ambos os casos há orientação de que se deve conduzir o envolvido ao distrito
policial, sendo que no primeiro por violação ao artigo 12 da Lei nº
10.826/2003, posse irregular, no segundo por violação ao artigo 14 da referida
lei, por manter sob sua guarda arma de fogo sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar.
Portanto, inexiste a possibilidade de apreensão sem o
cometimento da hipótese prevista no artigo 12 da Lei nº 10.826/2003, que não
pode ser confundido com a remissão ao artigo 12 do referido decreto que
estabelece os critérios para possuir arma de fogo, entre eles avaliação
psicológica e tiro prático.
Ademais, nos casos mencionados foi necessária a contratação
de advogado para defesa na ação penal e no habeas corpus, sendo menos custoso se os envolvidos tivessem atendido os requisitos para a
regularização da arma de fogo.
Excelente artigo.
ResponderExcluirFelizmente, as interpretações jurídicas na atual conjectura social de nosso Estado, remete a decisões que não reflete o real espirito da lei, e são decisões essas que alcançam poucos, na sua maioria o fiel da balança é o contido no dispositivo legal.
Ao invés de dar uma interpretação benéfica ao réu, porque não se decidiu com base no contido no dispositivo legal e, posteriormente, provocasse o Legislativo e promover mudanças na disposição legal visando a atingir somente aqueles travam o desequilíbrio da ordem social do Estado, seguindo nesse prisma os ensinamentos do doutrinador Luiz Flávio Gomes, citada no HC, aí sim seria se demonstraria justiça, pois alcançaria o interesse de toda sociedade.